Resumo
A velocidade da mídia eletrônica altera o campo dos conceitos e introduz uma nova forma de experienciar o tempo e o espaço, aqui tratada como ciberespaço. Ela se relaciona a uma geograficidade determinda pelo processo de desencaixe, entendido como o deslocamento das relações sociais dos contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço, promovido pela telemática.
1) Introdução
Nas três últimas décadas, a Geografia tem sido marcada por uma forma peculiar de operacionalizar a complexidade da sociedade. Da prática humana emergiu o modo materialista de analisar o objeto de estudo do geógrafo. A influência marxista acredita ser necessário pensar as relações sociais em termos de suas conexões com o tempo e o espaço.
A concepção materialista e dialética concebe o tempo e espaço como formas peculiares da existência da matéria em movimento. Desse modo, a materialidade social só existe no tempo e no espaço. A matéria em movimento é a base de tudo que existe no mundo. Ela é também a realidade objetiva, existindo fora de nossa consciência e nela se reflete. Há uma impossibilidade da existência do tempo sem o espaço. Os dois estão ligados aos aspectos de sua coexistência e mutação.
A desenfreada aceleração tecnológica deste final de século tem procurado alterar essa concepção materialista do espaço, a partir de uma “queima do espaço e da experiência de um tempo em intensificação”. É o que Harvey (1993) chama de compressão espaço-temporal. A velocidade dos media eletrônicos instaura uma nova forma de experienciar o tempo, substituindo a noção de tempo-duração por tempo-velocidade e a instantaneidade das relações sociais. O tempo advindo das novas tecnologias eletrônico-comunicacionais é marcado pela presentificação, ou seja, pela interatividade on-line, fato constatado nas tecnologias de telepresença em tempo real que alteram nosso sentido cultural de tempo e espaço.
Na verdade, há toda uma falácia de que o espaço geográfico, enquanto expressão material das práticas sociais no seu contínuo movimento de transformação, perde importância diante da revolução da telemática. Alguns autores sugerem o fim da geografia, afirmando que se toda prática social é acompanhada por uma grafia deixada no espaço, o domínio das relações sociais via imagens em tempo real tende a abolir o espaço. Entretanto, a concepção materialista da sociedade sugere a impossibilidade de existência do tempo sem o espaço e a matéria em movimento. Acreditamos que qualquer alteração nos sistemas de interação social será sempre precedida por uma materialidade espaço-temporal representativa de um movimento de mutação e permanência de uma forma específica de sociabilidade.
É neste sentido que entendemos o ciberespaço. Para nós, o ciberespaço é uma dimensão da sociedade em rede, onde os fluxos definem novas formas de relações sociais. Ao contrário do censo comum em torno do aniquilamento do espaço pelo tempo, parece-nos que, tal como afirma Castells (1999, p.490), é o espaço material que organiza o tempo, “estruturando a temporalidade em lógicas diferentes e até contraditórias de acordo com a dinâmica socioespacial”. Entretanto, se o espaço material organiza o tempo, a emergência de um tempo-real das redes comunicacionais colabora para uma sensação de aniquilamento do espaço pelo tempo, na forma de um espaço virtual. De um modo geral, podemos dizer que o tempo-real também implica a organização de novas relações sociais que se expressam na formação de um espaço virtual e na reestruturação do espaço concreto preexistente, provocando intenso processo de inclusão e exclusão de lugares e pessoas na rede.
Neste estudo, o ciberespaço será analisado enquanto um conjunto de diversas redes comunicacionais informatizadas, tais como a Internet, Kidsphre, Zamir etc. O espaço de fluxos de imagem, som, informação e de socialidade definido pelo ciberespaço expressa uma “organização material das práticas sociais de tempo compartilhado que funciona por meio de fluxos” (Castells, p.436). Cabe apenas lembrar que tais redes não estão somente no espaço de fluxos. De acordo com Levy (1993, p.26), elas constituem o próprio espaço.
Se o ciberespaço é parte integrante da sociedade contemporânea, logo é uma realidade que a Geografia deve buscar compreender, enquanto uma nova forma de materialização dos avanços da sociedade capitalista. Neste sentido, o artigo em tela procura dar uma contribuição acadêmica, ao responder a seguinte questão: Qual é a geograficidade do ciberespaço, visto que o espaço geográfico é normalmente entendido como uma forma territorial de organização material da sociedade? Para tanto, a análise estará assentada nas discussões teóricas sobre a cidade real e cidade eletrônica enquanto expressão de uma nova totalidade social imposta pelas tecnologias comunicacionais. No final, buscaremos elucidar alguns aspectos do ordenamento implícito nas cidades eletrônicas como extensão virtual da cidade concreta e real. Enfim, não pretendemos alcançar uma resposta conclusiva sobre o tema, e sim possibilitar a abertura de um canal de discussão sobre a temática proposta.
2) A Geograficidade do Ciberespaço
Giddens (1994) ao analisar as conseqüências da modernidade, no final do século XX, apresenta um conceito importante para nossa análise. Para ele, os avanços tecnológicos da sociedade moderna têm permitido um distanciamento progressivo dos indivíduos de suas referências de tempo e espaço, chamado de “desencaixe”. Hoje em dia, na rede telemática, o tempo tem se esvaziado e perdido, cada vez mais, relação com a experiência prática da vida dos homens num determinado lugar. O espaço concreto cria seu oposto, o espaço virtual, e novas formas de contatos interpessoais. Baseado nestas concepções de tempo e espaço, o desencaixe seria o deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço. Daí emerge o que denominamos de ciberespaço, isto é, um dos processos contemporâneos de desencaixe, promovido pela telemática.
Quando se fala em ciberespaço é comum pensar em algo que não nos é palpável, imaterial, um lugar distante de nossa realidade, onde relações sociais, culturais, econômicas ao se estabelecerem se fazem no imaginário, “algo de outro mundo”, um ambiente futurístico, um divertido desenho animado dos Jetsons. Essa é uma visão idealista do tempo e do espaço. Algumas tentativas de explicar o ciberespaço esbarram numa postura idealista, com todos os seus matizes, ou seja, procuram negar a realidade objetiva do espaço como forma de existência da matéria.
Um dos principais filósofos idealistas, partidário de uma concepção subjetiva do espaço e do tempo foi Emanuel Kant. Para ele, tempo e espaço eram duas formas de representação sensitiva, ou seja, uma forma de contemplação dos sentidos. No entanto, o ciberespaço não é somente uma sucessão de imagens e sensações experienciadas pelo indivíduo que teleinterage com a máquina, a fim de manter contatos com um “mundo mágico”, é também uma nova expressão material dos avanços da sociedade contemporânea.
Mas que mundo é este que muda a nossa noção de tempo e espaço?
Willian Gibson (1991), em seu livro “Neuromancer”, foi o primeiro autor a utilizar o termo para designar este ambiente artificial, onde dados e relações sociais trafegam (ou navegam?) indiscriminadamente. Para ele, o conceito de ciberespaço é o de um espaço não físico ou territorial no qual uma alucinação consensual pode ser experimentada diariamente pelos usuários. O ciberespaço é a “MATRIX”, uma região abstrata invisível que permite a circulação de informações na forma de imagens, sons, textos etc. Este espaço virtual está em vias de globalização planetária e já constitui um espaço social de trocas simbólicas entre pessoas dos mais diversos locais do planeta.
Cabe lembrar que a dinâmica imaterial do ciberespaço é apoiada no avanço das forças produtivas do sistema capitalista, na sua busca incessante de aumentar a velocidade de rotação do capital e das transações mercantis e financeiras em escala planetária e é também resultante das tecnologias voltadas para a Guerra, como a Internet. Para tanto, todo um investimento em tecnologia de informação se apresenta. As grafias deixadas pelas técnicas no atual estágio de produção social do espaço se expressam nos sistemas de satélites, cabos de fibra ótica, teleportos, rede de computadores com inovações constantes em softwares, hardwares etc.
Atualmente, o ciberespaço pode ser compreendido a partir de duas perspectivas: 1) como via expressa de informação através da conexão de computadores em rede e 2) como realidade virtual”.
Para que se possa ter acesso à via expressa de informação, é necessário que sejam estabelecidas as “condições ambientais” do ciberespaço. O ambiente construído é a expressão material que permite conexão com um novo sistema de relações sociais. Tais condições só nos é possível a partir de um arranjo espacial que inclui o computador, monitor, teclado, mouse, linha telefônica, provedor de acesso, redes telemáticas e outros meios eletrônicos capazes de nos conectar com o ciberespaço. Estas formas estáticas, aos quais estamos fisicamente ligados, nos transportam, através da virtualidade, para um mundo onde prevalecem as nossas sensações. A experiência de tempo e espaço não existe “nas coisas visíveis do ciberespaço”, mas sim aparecem somente na zona do subjetivo. Desse modo, o ciberespaço é uma veleidade, no sentido de abrir alguma possibilidade de enfoque idealista da materialidade social da sociedade moderna.
Para que possamos prosseguir se faz necessário esclarecer o que entendemos por “realidade virtual”. Trata-se, claramente de uma revolução. Uma alteração radical na forma de conceber o tempo e o espaço, e mesmo os relacionamentos. Segundo Pierre Levy (1996, p.16),” o virtual não se opõe ao real e sua efetivação material, mas sim ao atual”. Filosoficamente, o virtual é entendido como o que existe em potência e não em ato. O virtual é extensão do real, ou seja, é um real latente. As imagens virtuais fazem mediação da realidade. O tempo instantâneo e espaço virtual são os novos vetores que se inserem e se articulam ao ambiente construído pela sociedade em rede telemática.
O ciberespaço é, então, um ambiente que permite inúmeras possibilidades do mundo real. O mundo virtual caracteriza-se não propriamente pela representação, mas pela simulação. Esta simulação é ,na verdade, apenas uma das possibilidades do exercício do real. Desse modo, podemos afirmar que o ciberespaço não está desconectado da realidade.
No ciberespaço o espaço de fluxos realiza um processo de desmaterialização das relações sociais conectadas em rede. O que antes era concreto, palpável e material adquire uma dimensão imaterial na forma de impulsos eletrônicos. Ao mergulhar no ambiente do ciberespaço, o usuário experimenta uma sensação de “abolição do espaço” e circula em um território transnacional, desterritorializado, no qual as referências de lugar e caminhos que ele percorre para se deslocar de qualquer ponto a outro modificam-se substancialmente.
Na rede do ciberespaço surgem pontos de fixação de relações sociais acessados por uma chave eletrônica. Quando enviamos uma correspondência por e-mail, ou visitamos um determinado site ou link, desconhecemos o caminho ou rota pelo qual se realiza o encontro. A guisa de exemplificação, podemos dizer que ao enviar um e-mail do Rio de Janeiro para Niterói, não sabemos qual é a infovia percorrida. Não podemos descrever a paisagem pela qual a comunicação percorre. Os provedores de acesso são inúmeros, podemos até imaginar que para sair do Rio de Janeiro e chegar a Niterói o percurso possa ser via São Paulo. Logo, as referências de lugar desaparecem.
Estamos, então, diante do debate entre lugar e “não-lugar” (Marcondes Filho: 1996, p.146-7). O lugar normalmente é associado a uma materialidade definida por relações simbólicas, míticas, identitárias e históricas do grupo social que ali reside. O não-lugar, por sua vez, seria marcado por uma relação com o espaço sem tais pressupostos (Augé:1994, p.73-77). Como exemplo de não-lugar, Augé inclui os lugares de passagens, de não fixação e da ausência de identidade sentida pelas pessoas que os freqüentam, tais como os aeroportos, shopping-centers, auto-estradas etc[3]. No ciberespaço, o não-lugar é caracterizado como passagem e momento de fixação de uma consciência individual e solitária assentada em relações identitárias que o usuário da rede constrói, em sua memória, diante da tela do computador e dos movimentos de imagens aí registrados. Esse lugar, que propomos chamar de “lugar virtual”, diverge da definição de Augé, pois na rede é possível uma relação de convivência de pessoas, produzindo identidades expressas nas tribos eletrônicas. Temos, portanto, um novo referencial do espaço vivido enquanto produto das relações humanas mediatizadas pela revolução telemática, impondo novas formas de pertencimento destituída da materialidade dos lugares, tal qual até então concebemos. Ou seja, na rede o indivíduo pode pertencer a um lugar que não existe, já que este se apresenta como simulacro.
Embora possa ser esvaziado de afetividade e sem história, esse “lugar” dá sentido a um tipo de relação social através de uma localização virtual cujo acesso é via chave eletrônica, ou seja, de um endereço (www, @, FTP, ICQ, etc) que identifique o domínio de onde o usuário está inserido. De acordo com Cardoso (1997), tal conexão difere do uso de um telefone ou fax, visto que na localização virtual as locações são materialmente indeterminadas.
As características do “lugar virtual” residem na territorialidade, imaterialidade, tempo-real e interatividade. Tais aspectos possibilitam relações sociais simultâneas e acesso imediato a qualquer parte do mundo, inaugurando uma nova percepção do tempo e das relações sociais.
É no anonimato do “lugar virtual” que se experimenta solitariamente uma nova sociabilidade. O viajante pode caminhar por diversas infovias até encontrar o grupo ou tribo que mais se assemelha, ou informações. Ao encontrar sua tribo, o indivíduo fixa-se neste endereço eletrônico e passa a experienciar e compartilhar de um lugar simbólico e marcado por relações de pertencimento de caráter ideológico, afetivo, sexual ou racial.
Por que o ciberespaço tem atraído tanto info-sociedade, ou seja, os grupos de pessoas conectadas em redes de comunicação via telemática? Acreditamos que as comunidades virtuais estão atreladas a uma nova efervescência social construída a partir do anonimato. No ciberespaço, as pessoas são capazes de interagir sem, no entanto, necessitar divulgar sua identidade. É possível adquirir múltiplas faces, utilizar diferentes máscaras, e revelar os seus desejos mais íntimos. Ser o que gostaria de ser no “mundo real” e o que não é devido às leis sociais.
Logo, o ciberespaço possibilita a emergência de uma socialidade que se contrapõe a uma sociabilidade do mundo real. Para Michel Maffesoli (1984), a socialidade é um conjunto de práticas quotidianas que escapam ao controle social rígido e, ao mesmo tempo, um verdadeiro substrato de toda vida em sociedade. De acordo com Lemos (1998, p.2), a socialidade do ciberepaço é uma forma de contracultura. Diversas tribos eletrônicas buscam uma maneira não convencional de ser ou pertencer a um imaginário coletivo no qual as pessoas compartilham suas ideologias, fantasias e anarquias. Este imaginário coletivo pode tomar diferentes formas e criar grandes movimentos de massa com uma força capaz de definir revoluções políticas e econômicas a ponto de interferir diretamente na realidade de um espaço concreto, real. Como exemplo, podemos citar os grupos de hackers que atacam sistemas de defesa e financeiros e a formação de grupos de solidariedade que buscam interferir em diversos momentos da vida política e econômica de um país em escala global, bem como defender apoio às diversas territorialidades como as dos seringueiros e índios da Amazônia brasileira. A sociabilidade, por sua vez, caracteriza-se por relações institucionalizadas e formais de uma sociedade, isto é, uma maneira convencional de “estar em sociedade”, de pertencer a uma determinada sociedade (Maffesoli, 1984). A comunicação entre os integrantes de um grupo de pessoas reside na utilização de um conjunto de simbologias pré-determinadas. As relações de sociabilidade, às vezes, retrata um “ser” artificial, estereotipado enquanto a socialidade retrata o ser como ele é.
A socialidade eletrônica incide diretamente na pós-modernidade, provocando uma transformação do caráter social em função dos novos tempos e uma nova agregação social. É nela que os valores tribais se socializam e crescem para o conjunto do corpo social; é uma identificação e união das “consciências iguais”, criando uma solidariedade e cumplicidade. A tribo envolve um caráter ativista, de uma sociabilidade perdida. Muitas das tribos existentes no ciberespaço são grupos de minorias no mundo real, que devido à exclusão social, se sentem renegados a uma falsa identidade na sociedade formal. O isolamento do mundo real via Internet encontra compensação e reforços nas infinitas possibilidades de trocas e de interações em diferentes níveis nas comunidades virtuais. Não se pode dizer que o computador isola o indivíduo, muito pelo contrário ele permite toda essa inserção no mundo virtual. Desse modo, muitas tribos têm sido criadas, algumas bem conhecidas como os Pherakes (piratas do telefone), os Hackers (a elite da informática), os crackers (Cyberpunks – a versão negra dos Hackers), os Ravers e Zippies (herdeiros da contra-cultura dos anos 70), estes últimos particularmente interessantes porque utilizam o que os seus primos hippies deixaram de lado como inimigo: a tecnologia. Os ciber-rebeldes expressam todo o seu cotidiano utilizando formas de descarregar um vitalismo, para melhor ou para pior, e, ultimamente, há tribos que disseminam pedofilia, neo-nazismo, anarquismos, homossexualismo, terrorismo, tráfego de drogas, ONGs, ajuda comunitária etc.
A socialidade eletrônica simula a via do real e caracteriza-se pela inexistência do face-a-face, permitindo mais fôlego para que a sociedade possa investir na sua individualidade. A sua existência deixa marcas no nosso cotidiano e no local onde vivemos. Os usuários da rede estão modificando os seus hábitos pessoais e a forma de interação com a cidade onde mora. Segundo Virilio (1993), a velocidade na rede é igual ao divórcio social e a tendência na cidade real é dessocializar, provocando uma diminuição do universo socializante real. Fica claro então que na rede a sociabilidade se transfere, se desenraíza do solo para virar uma socialidade eletrônica que não utiliza diretamente o espaço concreto. O social que sempre foi vinculado a um território, a um espaço onde as pessoas se localizam, pode passar a um campo abstrato (não-lugar, chave eletrônica) mas que se reveste de uma forma concreta na vida das pessoas.
É neste espaço que encontramos pluralidade e complexidade. É visível que os ideais da modernidade estão dando vazão a valores alternativos. Além do anonimato, busca-se no ciberespaço um grande desejo de não estar só. Esta possibilidade real do ciberespaço também está associada, além de muitos outros fatores, ao medo da violência urbana, à possibilidade de encurtamento das distâncias, ao poder “estar” em diversos “locais” ao mesmo tempo, desafiando qualquer lei da física conhecida por nós até hoje.
É importante também mencionar que no cotidiano de uma cidade, as pessoas não têm tanta disponibilidade de se dedicar a uma conversa de alguns minutos face a face. É cada vez menos possível dispor de tempo para investir em relacionamento futuro. No ciberespaço acontece o contrário. Quando entramos num bate-papo na rede dedicamos integralmente o nosso tempo frente a tela do computador e aos nossos relacionamentos virtuais, às nossas tribos.
De acordo com Levy (1996), o ciberespaço é um meio onde será possível se consolidar a tecnodemocracia, ou seja, uma nova formação política onde a tecnologia da eletrônica tornará viável o desenvolvimento de comunidades inteligentes capazes de se autogerir. A autogestão estará ligada aos grupos que se formariam através das preferências individuais, dando origem a territórios imaterializados. O grande perigo é que, atualmente, existe um pequeno grupo de pessoas privilegiadas que detém a “senha de acesso” à tecnologia de informação. Logo, o ciberespaço faz surgir sociedades marginalizadas, os info-excluídos. A era tecnológica cria ou recria uma nova divisão social, uma redistribuição de saberes, poderes, dois mundos que se separam de acordo com a participação ou não na telemática.
3) O ordenamento das telecidades no ciberespaço
A análise da sociedade moderna até aqui desenvolvida sugere que estamos diante de um nova forma de produção social do espaço. Curioso é que a concepção materialista da geograficidade, deste final de século, apresenta um sistema de relações sociais, expressas no ciberespaço, no qual o tempo real-instantâneo é um tempo sem tempo e a nova cotidianidade é destituída de espaço e matéria. A imagem-fluxo, a presentificação, a realidade virtual e as diversas possibilidades de comunicação on-line sugerem um novo ambiente, que alguns chamam de cidade eletrônica ou cidade digital, derivada das redes comunicacionais e informáticas.
Tais redes são o suporte estrutural para a duplicação da cidade real nas redes, a que Virilio (1993) chamou de telecidades. A cidade eletrônica é resultado de um conjunto de máquinas que interagem simultaneamente via rede de informática (internet, por exemplo), provocando um esvaziamento do espaço urbano e um investimento no tempo. Mas é, antes de tudo, não um lugar, e sim um processo caracterizado pelo predomínio do espaço de fluxos (Castells, 1999, p.423). Apesar de a economia e das relações sociais se processarem, majoritariamente, nas cidades reais (a produção, as trocas e a cultura de massa), cada vez mais, temos a expansão de uma “cidade eletrônica” colocada pelas redes. Isso porque a telecidade incrementa a materialidade da economia capitalista via redes e sistemas interativos diversos. Logo, as redes e as telecidades possibilitam, não só uma desterritorialização da sociabilidade, mas também uma desmaterialização de processos capitalistas de produção, circulação e consumo.
A estrutura organizacional desta cidade lembra um rizoma, ou seja, uma multiplicidade de conexões sem sujeito e objeto. Os rizomas se ramificam e se reticulam, num intenso processo de desterritorialização e reterritorialização das relações sociais (Guattari e Deleuze, 1982). Isso porque, a cidade digital é um corredor de movimentação de informações e imagens que demanda organizar zonas de fixação. De acordo com Levy (1996, p.152), “o deslocamento não elimina a fixação: ele a setoriza, codifica, tornando-a dispersa, internamente fragmentada”. A concepção desta cidade formada por rede de fluxos possibilita vislumbrar um ordenamento da imaterialidade das relações sociais. A análise desta cidade implica uma concepção de espaço deslocada do movimento de matérias (átomos) e do tempo-duração.
De acordo com Silva (1998), a materialização da cidade digital é um simulacro, não é cópia de nada. Ele afirma que a cidade eletrônica é um “simulacro do espaço, mas é espaço”. Entendemos que esta definição só pode ser compreendida a partir de uma concepção materialista das transformações estruturais por que passa a sociedade, em face do paradigma da velocidade, da supressão do espaço-tempo e da interatividade absoluta entre as pessoas através das infovias. O simulacro da cidade digital só pode ser espaço, no sentido de estar calcado numa realidade objetiva e material. O que ocorre no ciberespaço é apenas uma potencialização das relações sociais na forma de um simulacro de cidade. No entanto, para se vivenciar uma realidade virtual deslocada da geografia é necessário um espaço material e mutável. A realidade virtual que se apresenta no ciberespaço não é somente fruto de contemplação sensorial das imagens e troca de informações, mas antes de tudo, uma forma objetiva de ser da nova materialidade do arranjo social em redes comunicacionais.
Enfim, os avanços nas forças produtivas sob a égide do capitalismo sugerem maiores investimentos na velocidade como vetor de uma nova cultura e a implantação de um ciberespaço, ou cidade eletrônica, onde a geografia, ou seja, os grafias deixadas pelas relações sociais desaparecem, pois não são mais materiais, articulando-se e dinamizando-se em redes rizomáticas. Por outro lado, os investimentos no tempo (teleporto, cabos de fibra ótica, satélites, etc) têm sido acompanhados por desinvestimento do Estado na dimensão do espaço físico-social da cidade (melhorias nos sistemas de transporte, hospitais, escolas, etc).
Paul Virilio (1993) afirma que à medida que as tecnologias de comunicação estão cada vez mais velozes e ligadas ao tempo real, destroem-se as geograficas, obliterando-se os territórios através de uma transferência do espaço real das cidades e dos territórios para as imagens, ou seja, para a tela dos computadores.
Apesar das considerações de Virilio, enfatizamos que mesmo sem ser um espaço material, a cidade eletrônica é parte integrante da concepção materialista da sociedade contemporânea conectada nas infovias. Entender o domínio das técnicas de criação de novos sistemas de relações sociais, e desses novos espaços, é abrir um verdadeiro leque das aplicações possíveis para a Geografia, já que o fim da geografia é uma veleidade.
4- Para não concluir
A dinâmica da cidade eletrônica implica um ordenamento complexo, interativo, instável e auto-organizante que conta com a desordem expressa no acesso à rede e às diversas socialidades que ali se apresentam. A estrutura dessa cidade é rizomática (Guattari e Deleuze, 1982), isto é, ramificada e reticulada permitindo estratificações e territórios das tribos dos zipppies (neo-hippies cibernautas), hackers, cyberpunks, tecno-anarquistas, neonazistas, pedófilos e de muitos outros grupos. Entretanto, tal arranjo cria linhas de fuga e de desterritorialização sucessivas de diversas tribos na rede. Desse modo, ordem e desordem são parte integrante dos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, já que a existência da cidade eletrônica não implica um controle centralizado, e sim uma desordem expressa em múltiplas conexões heterárquicas.
A socialidade da telecidade se contrapõe a sociabilidade real, inaugurando uma socialidade eletrônica, conforme já explicamos anteriormente. A cultura das redes aí instalada não tem vinculação com qualquer tipo de regionalidade, já que é uma cultura do imediato, sem referências nacionais específicas. Na verdade, poderíamos também nos referir às redes comunicacionais informatizadas como cultura. Há uma cultura se firmando fora dos espaços materiais através das telecidades cuja “estrada principal” é via satélite e cabo de fibra ótica. Apesar da dificuldade de caracterizar essa socialidade eletrônica, é notório que estamos diante de um outro tipo de produção cultural, no qual a referência identitária a um lugar desaparece. É necessário, portanto, uma renovação conceitual sobre a definição de um território a partir dos limites reais da identidade cultural de um grupo social. Na rede não há fronteiras para as territorialidades expressas pelas tribos eletrônicas. Na rede, diversos grupos de pessoas se identificam e passam a ter uma relação afetiva com um espaço virtual que não deixa de ser uma forma de territorialização. A idéia do territorialismo associado ao enraizamento às fronteiras físicas e ao controle político desaparece. A chave eletrônica dá acesso à rede e a novos territórios culturais imaterializados que se colocam no limiar do próximo século.
Essa nova cultura em rede ou vice-versa instala uma forma de ver o real, na qual a segregação emerge da seleção de diversos tipos de relações societárias que desejamos vivenciar. Na verdade, o ordenamento das cidades eletrônica implica a sua partilha por diversas tribos que se juntam por laços de afetividade cultural, sexual, racial etc. Nesse sentido, mais uma vez, podemos observar o virtual como extensão do real.
Um outro aspecto importante da cidade eletrônica é a ausência de mobilidade das pessoas e dos serviços, de modo a evitar as barreiras físicas impostas pela cidade real. Através do correio eletrônico podemos enviar uma carta sem uso do correio tradicional. Não precisamos mais ir ao banco para realizar uma série de serviços. A cidade do ciberespaço nos permite evitar o tráfego, a violência urbana, a fila dos bancos, a demora da entrega das cartas.
A revolução tecnológica das telecomunicações via informática criou não só um ambiente artificial – a cidade eletrônica- como também tem impactado na cidade real. As principais cidades do país e do mundo já estão reestruturando seu espaço, em face das grandes empresas transnacionais que demandam a inserção dos lugares em um espaço de fluxos globais, como é o caso da Volkswagem, em Resende (RJ). Do ponto de vista da força de trabalho, a cultura da rede já altera a geografia dos trabalhadores. Tradicionalmente, a cidade real é diferenciada internamente entre o local de trabalho e a residência. Hoje alguns empresários já promovem a utilização da própria casa do trabalhador como um pequeno escritório acessado à rede central da empresa e ao mundo.
É neste sentido, que podemos afirmar que a inserção de um grupo maior de pessoas, empresas e outras organizações políticas no ciberespaço pode provocar um esvaziamento da cidade real, tal como afirma Levy (1996), e um povoamento de uma cidade eletrônica sem fronteiras políticas, em que o ordenamento não se realiza pela disposição de formas espaciais materiais, e sim por uma organização lógica do acesso à rede que possui uma ética própria para quem ali deseja vivenciar.
Enfim, apesar de muita desconfiança por parte dos geógrafos em analisar o ciberespaço e de seu caráter altamente de exclusão social para grande parte da população mundial, tudo indica que a sociedade moderna do próximo milênio estará cada vez mais conectada à rede mundial de computadores. Neste sentido, cabe à Geografia problematizar a revolução tecnológica das telecomunicações enquanto impacto e reflexo das mudanças qualitativas do capitalismo, levando-se em conta a emergência de uma ciber-socialidade inserida na cidade eletrônica e a multiplicidade de territórios culturais e empresariais ali localizados, ou melhor, fora de lugar.
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Redes Comunicacionais– web:http://www.eca.usp.br/nucleos/ntc/ntc.htm.
[1] Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense.
[2] Aluna do Curso de Pós-Graduação em Organização Espacial do Rio de Janeiro do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense.
[3] Relph, Edward (1976) já havia proposto o conceito de placelessness (deslugar) para as paisagens monótonas, clonadas e desprovidas de identificação, tais como auto-estrada, os viadutos, conjuntos habitacionais etc. Relph, todavia, ressalta que para os usuários de tais localidades é possivel que elas assumam um sentido de lugar.
Carlos Alberto F. da Silva
Michéle Tancman [2]
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